terça-feira, 25 de setembro de 2012

Dr. Rosinha: Reflexões sobre o estupro coletivo em Queimadas/PB

Alma queimada
por Dr. Rosinha*

Fonte: Viomundo

Voltando de Queimadas para João Pessoa foi perguntado como estava me sentindo. Estava muito triste e me sentia desamparado e incapaz. Triste pelo que tinha ouvido. Desamparado como se sente qualquer pessoa que vive um fato que altera o rumo de sua vida e sabe que daí para frente não será a mesma. Incapaz de agir mesmo sentindo necessidade de fazê-lo.

Absorto pensava: como pode esse tipo de crime acontecer? O que fazer para que isso não ocorra nunca mais em lugar nenhum do mundo? Como fazer do mundo um local sem maldade? Será que existe essa possibilidade? Se existe, como conseguir? Pode ser sonho, mas é o que pensava.

“Como você está se sentindo?” A pergunta pegou-me de supetão e de supetão veio a resposta, num trocadilho. Um trocadilho que correspondia ao meu sentimento naquele momento: como vinha de Queimadas, sem titubear respondi que estava com a alma queimada.

Para alguns cidadãos e algumas cidadãs, o fato que me abalou pode ter passado despercebido ou até, após o conhecimento, ter sido esquecido. Compreensível, pois a violência se tornou cotidiana, corriqueira e banal: os fatos são uns piores que os outros e em sequência. Mas a mim não, continuo chocado, por isso volto ao tema. Já abordei o que aconteceu em Queimadas num artigo (“Não teve graça”) publicado no Viomundo, mas entendo necessário voltar ao tema.

Escrevi em “Não teve graça” que em Queimadas, município do interior da Paraíba, na noite de 12 de fevereiro de 2012 ocorreu uma “festa de aniversário”. O aniversariante havia pedido como “presente” algumas meninas, e que as mesmas fossem escolhidas “a dedo”. Para que o presente fosse completo não poderia haver alarde e tampouco gritos, por isso foram compradas cordas, panos para confeccionar capuzes, meias e esparadrapos para vedar bocas. Os capuzes eram para cobrir o rosto das convidadas, as cordas para amarrá-las e as meias e esparadrapos para silenciá-las.

Durante a “festa de aniversário” – na verdade um estupro coletivo – duas delas conseguiram reconhecer os “festeiros” criminosos. As duas foram amarradas, vedadas, colocadas na carroceria de um Fiat Strada e levadas como reféns. Na cidade, em frente à Igreja Nossa Senhora da Guia, uma delas conseguiu pular e ali foi baleada e morta. A outra foi encontrada, no dia seguinte, também morta, na carroceria do carro, amarrada, despida e com meias na boca.

Semana passada, dia 13, junto com a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga a violência contra a mulher, fui a Queimadas, Paraíba. Fomos ouvir as vitimas e parentes das vitimas deste hediondo crime. Não só ouvir, mas também prestar a nossa solidariedade e pedir às autoridades paraibanas que os criminosos, já identificados e presos, sejam exemplarmente punidos.

Não sei se há na história do Brasil algum outro crime com as características do que ocorreu em Queimadas. Foi um crime planejado e pela sua violência chocante para qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade humana.

Não consigo compreender como homens são capazes de pensar e executar… Faltam-me até palavras para classificar o que fizeram. Como são capazes de olhar para uma mulher e ver um objeto, uma coisa para seu uso, abuso e descarte? Como podem olhar para uma mulher e não compreender que ela também tem alma, espírito, coração, sentimento, sonhos, esperanças, desejo de felicidade e que também sofre e sente dor? Sinceramente não compreendo e sinceramente é com tristeza, muita tristeza, que constatei que não consigo perdoar quem assim age.

Ao ouvir o relato das vítimas e de seus familiares é possível sentir o sofrimento de cada um e de cada uma. Não há como ouvir o relato e não se emocionar, chorar, se revoltar e clamar por justiça. Depois de ouvi-lo não sou o mesmo, não consigo olhar o mundo com o mesmo olhar. Após os encontros com as vítimas, familiares e autoridades (delegada, promotor e juíza), sai de Queimadas chocado e solidário ao sofrimento dessas pessoas. Sai triste, muito triste, confuso e com muitas dúvidas. Sai buscando a razão da vida.

Na volta para João Pessoa, vários pensamentos se confundiam e me confundiam. Passou pela minha cabeça um poema de Mario Quintana: “Da vez primeira em que me assassinaram / Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. / Depois, a cada vez que me mataram / Foram levando qualquer coisa minha”.

Em Queimadas, mais uma vez fui assassinado. Em Queimadas perdi um jeito de sorrir. Em Queimadas levaram qualquer coisa minha. Levaram parte da certeza que eu tinha na raça humana. Levaram a certeza e me implantaram dúvidas: é possível acreditar numa espécie cujo macho elabora e executa tamanha barbárie? É possível acreditar numa espécie cujo macho, segundo o Instituto Sangari, assassinou entre 1980 e 2010, portanto em 30 anos, mais de 92 mil mulheres, só no Brasil. Só de 2000 a 2010, segundo o estudo, foram assassinadas 43.700. Portanto, mais de 4.300 mulheres por ano, aproximadamente 12 mulheres por dia, ou seja, uma a cada duas horas. Assassinadas. Não estão sendo contabilizadas as mulheres vítimas de violência física, psicológica e sexual. Nesta contabilidade tampouco estão as vitimas do narcotráfico, que muitas vezes também são vítimas do machismo.

Essa tragédia humana é causada pela relação de gênero, na qual o homem se sente superior e olha a mulher como uma coisa, um objeto seu. A tragédia de Queimadas é mais uma tragédia causada pelo machismo.

Voltei, mas parte de mim ficou em Queimadas, ficou com as vítimas que sobreviveram e seus familiares. Ficou no temor do dia-a-dia, no medo que sentem das famílias dos criminosos (falam pela cidade que o mentor dos crimes tem dinheiro e logo estará solto e de volta). Ficou na indignação de ter que suportar todos os dias nas ruas as gracinhas e as piadas. Ficou no silêncio da cidade que deixou de falar com as vítimas e com suas famílias. Ficou no sofrimento que representa cada canto da casa ou da cidade. Ficou na consternação, no não compreender o que ocorreu e na possibilidade do inconsciente negar. Por tudo isso, não tem como minha alma não estar ferida, queimada.

*Dr. Rosinha, médico com especialização em Pediatria, Saúde Pública e Medicina do Trabalho, é deputado federal (PT-PR). No twitter: @DrRosinha